No limite percorri a linha do horizonte, a ténue linha do encontro entre a claridade e a escuridão. Vi a vida e a morte. O pesadelo e o sonho. Vi a tua verdadeira face. A face de um EU morto brotado da obtusidade do acaso. Escondes-te nesse vértice de um ângulo obtuso. No vértice de duas semi-rectas abertas, que se estendem até ao infinito sem nunca se encontrarem. A tua divisão, as duas faces, nas linhas de um ângulo obtuso. No vértice o teu EU morto jaz.
A face do dia é a semi-recta horizontal. A linha constante, sem sobressaltos, nem exaltações. Ruma ao infinito sempre directa, sem uma lomba. Imaculada na sua perfeição. É perfeita na ignorância dos outros. Os outros, os que não vêem a face da noite.
A face da noite é a semi-recta inclinada. A inclinação sobressai como o culminar rude de um vértice sem bissetriz. Desorientada, dispara num tenso caminho de negritude, além das profundezas do universo. Os outros, nunca a vêem.
No teu ângulo obtuso nunca caberá nenhuma bissetriz porque o vértice está morto. Obtuso na obtusidade característica de um ângulo sem bissetriz.
O teu texto poético fez-me lembrar um que li há algum tempo, e que também partilho aqui:
ResponderEliminarUm Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base...
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo ortogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela.
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?" indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode chamar-me Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
O que, em aritmética, corresponde
A alma irmãs
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz.
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Rectas, curvas, círculos e linhas sinusoidais.
Escandalizaram os ortodoxos
das fórmulas euclidianas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas
e pitagóricas.
E, enfim, resolveram casar-se.
Constituir um lar.
Mais que um lar.
Uma Perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissectriz.
E fizeram planos, equações e
diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E casaram-se e tiveram
uma secante e três cones
Muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até àquele dia
Em que tudo, afinal,
se torna monotonia.
(Não sei quem é o autor)
Este poema, chamado Poesia Matemática, foi escrito por Millôr Fernandes. O meu texto surgiu porque o ângulo obtuso, para mim tem duas linhas: uma perfeita e uma demasiado imperfeita. Depois, ainda há um jogo de palavras que espero que alguém descubra.
ResponderEliminarBem, obtuso pode ligar-se, também, a carácter. Bissetriz é uma linha que divide um triângulo em duas metades, mas, como este triângulo possui um vértice morto (sendo o vértice o ponto fulcral, poderá simbolizar, metaforicamente, o coração, despojado de sentimentos sinceros), nunca poderá encontrar a sua metade,arrastando-se em linhas paralelas que nunca se tocarão. É uma leitura possível para o teu jogo de palavras?
ResponderEliminarGosto disto. Já sei qual é a palavra com que andas a brincar. Chamaste-me isso em Labruge.
ResponderEliminarEsqueci-me de dizer. Também gostei do poema que a Cláudia deixou.
ResponderEliminarO vértice não é o coração. O texto fala de algo superior ao corpo. Fala da alma do ser humano, onde tudo reside. A bissetriz também divide um ângulo. Aqui não temos um triângulo, mas um ângulo obtuso que não se fecha nunca sobre si mesmo.
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