segunda-feira, 16 de agosto de 2010

No Limite

      No limite percorri a linha do horizonte, a ténue linha do encontro entre a claridade e a escuridão. Vi a vida e a morte. O pesadelo e o sonho. Vi a tua verdadeira face. A face de um EU morto brotado da obtusidade do acaso. Escondes-te nesse vértice de um ângulo obtuso. No vértice de duas semi-rectas abertas, que se estendem até ao infinito sem nunca se encontrarem. A tua divisão, as duas faces, nas linhas de um ângulo obtuso. No vértice o teu EU morto jaz.
     A face do dia é a semi-recta horizontal. A linha constante, sem sobressaltos, nem exaltações. Ruma ao infinito sempre directa, sem uma lomba. Imaculada na sua perfeição. É perfeita na ignorância dos outros. Os outros, os que não vêem a face da noite.
     A face da noite é a semi-recta inclinada. A inclinação sobressai como o culminar rude de um vértice sem bissetriz. Desorientada, dispara num tenso caminho de negritude, além das profundezas do universo. Os outros, nunca a vêem.
     No teu ângulo obtuso nunca caberá nenhuma bissetriz porque o vértice está morto. Obtuso na obtusidade característica de um ângulo sem bissetriz.


6 comentários:

  1. O teu texto poético fez-me lembrar um que li há algum tempo, e que também partilho aqui:

    Um Quociente apaixonou-se
    Um dia
    Doidamente
    Por uma Incógnita.

    Olhou-a com seu olhar inumerável
    E viu-a, do Ápice à Base...
    Uma Figura Ímpar;
    Olhos rombóides, boca trapezóide,
    Corpo ortogonal, seios esferóides.
    Fez da sua
    Uma vida
    Paralela à dela.
    Até que se encontraram
    No Infinito.

    "Quem és tu?" indagou ele
    Com ânsia radical.
    "Sou a soma do quadrado dos catetos.
    Mas pode chamar-me Hipotenusa."
    E de falarem descobriram que eram
    O que, em aritmética, corresponde
    A alma irmãs
    Primos-entre-si.

    E assim se amaram
    Ao quadrado da velocidade da luz.
    Numa sexta potenciação
    Traçando
    Ao sabor do momento
    E da paixão
    Rectas, curvas, círculos e linhas sinusoidais.

    Escandalizaram os ortodoxos
    das fórmulas euclidianas
    E os exegetas do Universo Finito.
    Romperam convenções newtonianas
    e pitagóricas.

    E, enfim, resolveram casar-se.
    Constituir um lar.
    Mais que um lar.
    Uma Perpendicular.

    Convidaram para padrinhos
    O Poliedro e a Bissectriz.
    E fizeram planos, equações e
    diagramas para o futuro
    Sonhando com uma felicidade
    Integral
    E diferencial.

    E casaram-se e tiveram
    uma secante e três cones
    Muito engraçadinhos.
    E foram felizes
    Até àquele dia
    Em que tudo, afinal,
    se torna monotonia.

    (Não sei quem é o autor)

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  2. Este poema, chamado Poesia Matemática, foi escrito por Millôr Fernandes. O meu texto surgiu porque o ângulo obtuso, para mim tem duas linhas: uma perfeita e uma demasiado imperfeita. Depois, ainda há um jogo de palavras que espero que alguém descubra.

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  3. Bem, obtuso pode ligar-se, também, a carácter. Bissetriz é uma linha que divide um triângulo em duas metades, mas, como este triângulo possui um vértice morto (sendo o vértice o ponto fulcral, poderá simbolizar, metaforicamente, o coração, despojado de sentimentos sinceros), nunca poderá encontrar a sua metade,arrastando-se em linhas paralelas que nunca se tocarão. É uma leitura possível para o teu jogo de palavras?

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  4. Gosto disto. Já sei qual é a palavra com que andas a brincar. Chamaste-me isso em Labruge.

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  5. Esqueci-me de dizer. Também gostei do poema que a Cláudia deixou.

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  6. O vértice não é o coração. O texto fala de algo superior ao corpo. Fala da alma do ser humano, onde tudo reside. A bissetriz também divide um ângulo. Aqui não temos um triângulo, mas um ângulo obtuso que não se fecha nunca sobre si mesmo.

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